Alexandre Sá
Monstros é a segunda individual de Fernanda Leme e reúne um conjunto de obras que explicitam alguns momentos nos quais a prática pictórica foi encontrando, no confronto do desaguar da vida, estruturas, formas, cores, símbolos e questões muito delicadas, como se conseguissem espelhar sua personalidade. Embora o cotidiano em sua velocidade ordinária seja sempre irrefreável, a arte encontra, a partir da artista e com a artista, uma cadência que parece amortecer o cadafalso inevitável dos anos, do perecimento e da fragilidade do próprio corpo.
A série inicial que de fato, lança Fernanda Leme em um processo mais agudo de exposição tem como mote, as selfies (Série 3 x 4). Talvez por já se sentir inevitavelmente inundada por elas, a artista produz um conjunto infinito de pinturas a partir de imagens capturadas de si mesma pelo aparelho celular. Tal processo, se olhado com pouca atenção, poderia indicar uma superficialidade eventualmente presente no universo confuso que envolve o sistema de arte e suas vaidades. Mas neste caso específico, o drible do processo do pintar é inevitável, pois as imagens, embora orquestradas com cores saturadas e contrastes retumbantes, aparecem como se desaparecidas. Ou talvez, aparecem sabendo que seu fim é inevitável. Como se fosse possível o olhar de uma criança que conhece a profundidade da morte.
Se à princípio parece que a série deambula sobre a imagem egóica da artista, por outro lado, quando atravessado o lago narcísico entre a obra, o espectador e sua época, o diálogo que se estabelece é especular como na órbita de um enfrentamento que reconhece o desafio monstruoso e o legado abissal do retrato como paradigma histórico. Só que desta vez, há um endosso da fantasmagoria e desta impossibilidade relacional. O tempo não mais aguarda o tempo do retrato. Surgem então outros trabalhos (Série Retratos), que reúnem eventuais fotografias criadas ou remixadas das páginas de jornais, revistas e fontes aleatórias pelo filtro da artista junto a alguma atmosfera de memória e sensibilidade.
Estruturalmente a volumetria torpe e a conjunção de cores que não se desvia do grotesco quando ele surge como um grito, terminam por endossar um determinado tipo de figuração que parece derreter-se e desconfiar da possibilidade de duração que a pintura outrora apregoava, já que aqui tais personagens também estão como se se agarrassem a uma lenda não mais possível de que toda a imagem, no tecido histórico da tela, teria assegurada sua duração e sua resistência ao esquecimento. E a fatalidade disjuntiva entre a realidade e o real se coloca de maneira contundente.
Para a psicanálise, o real é impossível de ser presentificado com precisão. Trata-se de algo da ordem do indizível. Embora, segundo Lacan, a única forma de encontrá-lo, como um vaga-lume no meio de uma noite sem luz da lua, seja o simbólico; é importante ressaltar que tal relação é sempre fronteiriça, permeável e tateante. As obras aqui reunidas bordam essa experiência do indizível a partir, obviamente, da experiência pessoal e das memórias da artista. Por certo não se trata de um trabalho que faz mau uso da psicanálise, ou de um tipo de trabalho que semanticamente retroalimenta os traumas pessoais, mas de um conjunto vigoroso de obras que evidencia a qualidade do enfrentamento árduo diante do abismo individual cotidiano.
A série Fim da Infância sintetiza parte das preocupações pictóricas dos outros trabalhos, mas insere um elemento estranho que nos lança entre a fina ironia e o lirismo saudosista de algum tempo perdido de alguma cidade também já destruída no inconsciente. Ou quase. Algumas personagens de histórias infantis assistem a cena e parecem demarcar o espaço simbólico de uma certa alegria do sonho. Ao mesmo tempo, no jogo rápido do paradoxo no qual a artista se alimenta até então, revelam sua fabulação e distanciamento inevitável da crueza do mundo das coisas.
Tal crueza ganha força absoluta na Série Luto quando a artista retoma as selfies, agora atravessadas por uma questão pessoal intransponível. O diagnóstico e tratamento de um câncer de mama. A representação obviamente é revirada e a rostidade ganha outros contornos. A seriedade da causa se presentifica na estrutura do quadro e a angústia atravessada se coloca na maneira através da qual a artista assume o problema como questão particular de ordem pública. A solidão, sempre presente, agora se revela e resvala.
Ao final do tratamento, a perda dos cabelos e toda a inevitável devastação, inclusive do feminino, a artista percebe que os fios, o pente, o ralo, o banheiro, o tempo, a mudança e a queda, podem ser elementos gráficos. Revisitando de forma madura sua formação em arquitetura, a artista opta por considerar tais cacos simbólicos como morfemas. E são tais morfemas que dão o nome a esta última série que, além de formarem palavras, reformam e reestruturam a obra, reinventam de maneira extremamente elegante o tônus figurativo, a própria artista e a dor nossa do existir.
Monstros é uma exposição que reúne mais de 50 pinturas. As obras potencializam e atualizam o debate entre pintura e fotografia na contemporaneidade a partir da perspectiva da explosão das imagens, das selfies, da fugacidade da captura do instante e da eventual fragilidade da vivência do momento. Considerando o legado da impermanência, os trabalhos problematizam a duração das imagens e de sua inevitável obsolescência, atravessados pela experiência da artista, que também surge como uma cronista afiada.
O título da exposição, consideravelmente irônico, nos pergunta em que medida a monstruosidade angustiada de captura do presente nos sufoca e enjaula em uma fantasia de liberdade, nos questionando inclusive, sobre a monstruosidade do próprio legado da pintura na História da Arte. Além disso, algumas das personagens retratadas, parecem ter consciência de que a tela não pode mais produzir qualquer segurança diante de um devir-eternidade, por si só, já envelhecido. Resta então algum vazio inevitável e alguma saudade.