Marisa Flórido
Somos um rosto, antes de sermos voz e nome. Ou o rosto é a abertura ao Outro a quem se doa e a quem se solicita olhar e acolhimento? O que seria um rosto? Relação, abertura, encontro, exposição, infinito, exterioridade? O rosto é antes uma invocação. Por isso os filósofos não cessam de se debruçar sobre seu mistério. Por isso o retrato nas artes sempre guardaria enigmas e perdas. Das máscaras mortuárias moldadas sobre o rosto perdido do amado à Palavra Invisível, que se fez carne e deu sua face ao Homem como imagem e semelhança (como matriz e espelho das visibilidades partilhadas), a questão do retrato se impôs diante do rosto como falta e promessa, como rastro e multidão. Esquiva e emergência das múltiplas faces que o constituem.
Como pintar autorretratos em uma época imersa no fluxo ininterrupto e veloz de imagens? Época em que o fácil acesso às novas tecnologias portáteis como celulares e máquinas digitais, os novos meios de circulação e exibição, como a internet e as redes sociais, vieram modificar nossas relações com as imagens, sobretudo as de nossa face e intimidade cotidiana. Atravessada por essas questões, Fernanda Leme apresenta aqui autorretratos realizados a partir de imagens que faz com o celular ou de seu arquivo pessoal, eventualmente introduzindo elementos e signos estranhos à cena, confundindo e cruzando tempos e memórias. Ao imediato do selfie, a seu rápido consumo e descarte, ela contrapõe a artesania da pintura, com seu tempo lento de execução e recepção.
Entre as obras em exibição, “Cabeças” é um políptico ao infinito. Trabalho em processo, obsessivo, iniciado em 2014 e sem previsão de finalizar, é constituído (por agora) de mais de 50 telas de 30x40cm. Autorretratos pintados a partir de selfies e fotos analógicas, cujas dimensões remetem a outra imagem, outrora bem mais comum: o retrato 3×4 das carteiras de identidade, das escolares aos RGs que atestavam nossa existência. As novas tecnologias de informação e comunicação atuam sobre os rastros deixados no ciberespaço: monitoram-se gostos, consumos, sensibilidades, comportamentos. A vida se transforma em dados coletados, classificados, vigiados, comercializados e manipulados. A vigilância, interiorizada, se estende das grandes potências e empresas ao vizinho ao lado. Quem autoriza minha existência? É interrogação implícita. Se os seres só têm existência se expostos à visibilidade absoluta e imediata, o desejo de viver transforma-se na obsessão à exibição. Para atestar a existência que se dissolve no próprio espectro, resta colocar-se sob o olhar do outro — na incerteza de sua realidade é preciso encontrar a chave que ostente sua evidência. Os vínculos se tornam dependentes dos impulsos elétricos, das redes eletrônicas, do on/off das ligações tecnológicas. A exposição de si e a conexão tornam-se compulsivas, precisa-se delas para existir e se ligar aos fluxos do mundo, mesmo que seja na fantasmagoria das redes e dos afetos. É como se o verso do poema “Retrato”, de Cecília Meireles, que intitula a mostra, não cessasse de ecoar: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”. É essa fantasmagoria, e certa alegria esfuziante como desespero implícito, que as pinturas de Fernanda Leme trazem à superfície destes espelhos baços, incertos e efêmeros.